
Hoje tenho em mim um sentimento de luto, luto por meu computador.
Velho, coitado...
Mal se aguenta das pernas, se é que a essa altura ele ainda tenha uma única que seja.
É um dos meus maiores amores - se não o maior deles.
Ajudou-me tantas e tantas noites a traduzir minha vida, alma ou músicas na Internet.
Noites essas que duraram cerca de nove anos, o que é muito na vida de um computador.
Lembro que era eu uma mocinha,
cocota mesmo, de dente de leite e pés no chão quando ele chegou.
Foi um alvoroço só, um computador de última geração para a geração da época e eu na curiosidade dos meus onze anos comecei ali a passar noites a fio frente ao computador.
Aprendi a escrever na escola e desaprendi com ele.
Reaprendi depois é verdade.
Criei tantos perfis em sites de relacionamento, marquei tantas festas, vi tantas fotos, descobri tantas músicas..tudo por ele...
Éramos nós inseparáveis, amigos de dividir a janta, almoço e café da manhã, de contar segredo, de espalhar novidades e manter amores;
Amigos em chuva e sol, menos de trovoada... ele tinha tinha pavor de trovão.
Confessou-me algumas vezes antes de eu desatar-lo o medo da morte por trovão, medo esse que não levará a sério, até um acidente que o deixou encostado por duas semanas.
Desde então, sempre que era dada a largada para uma trovoada daquelas, enquanto minha mãe rezava para a árvore não cair em nossas cabeças, corria eu em auxilio do meu grande e querido amigo.
Durante todos esses anos teve ele cara nova a cada lua, independente de ser lua nova, cheia, outrora, mania de mudar essa que acabei eu adquirindo com o tempo.
Deu-se que a velhice de seus software, hardware e todo o resto, resolveram como que num complô unirem-se a um vírus que o impedia de cumprir suas funções básicas, coisa que seria resolvido com sua milionésima formatação.
Acontece que de uns tempos pra cá o computador velhinho entrou na puberdade e passou a ter vontade própria, vontade que deixou seu Uzeda, pai de cinco filhos que já passaram da puberdade, enfurecido.
Tanto o deixou maluco que resolveu trocar o computador velhinho- que chegou bege e agora encontra-se cinza na sala de estar, por um pretinho de última geração.
O pobre computador velhinho ainda não sabe do seu fim, não sabe que hoje é seu último dia aqui e eu covarde que não hei de contar.
Vou junto aos outros esperar pela chegada do negrinho novinho.
Passo, olho, ele me olha de volta e sorri. Dou um sorriso amarelo e digo que ando cansada e evito o contato, ele grita atenção e pergunta o que tem feito de errado e logo se justifica que não anda tão veloz quando a nove anos atrás, mas que promete que só mais uma formação e tudo voltará ao normal.
Digo que tanto faz, não é nada e vai passar.
Ele acredita e diz para eu descansar para logo que voltar ver o
msn novo que tenho para baixar.
Sorrio e deito no sofá, finjo que durmo até que durmo de verdade.
Sou traidora, sei disso, mas o que posso eu fazer, afinal?
Não sou lá nem cá muito moderna, entendo bem de tecnologia, mas é só olhar para meus eletrônicos
pessoais que logo verá que prefiro a manivela - sempre preferi.
Tenho no meu quarto um som que tem um belo toca-fita.
Acho tão charmoso o envelhecimento das coisas, como acho charmosas as manchas no velhinho.
O pobre amigo, sabe disso e fica lá, no seu cantinho cansado, mal se aguentando das pernas, se é que ainda tem uma, todo seguro de si, com a certeza de que nada irá lhe acontecer.
Me sinto um monstro e nada faço.
Espero a chegada do computador preto, para poder vestir o meu e finalmente ficar de luto oficialmente.
Fomos mais do que amigos, fomos confidentes. Somos.
Somos só até essa noite e ele a essa altura sabe disso, depois de eu fazer um desktop de todo o computador, ele deve ter notado ou só anda cansado e por isso do sorriso amarelo.
Eu nada faço pra descobrir o que acontece e me sinto um monstro.
Um monstro com um sentimento de luto, luto por meu computador, computador por qual não luto.
Não luto, fico de luto.
Sendo assim torna-se um antecipado e covarde luto.